O avançado nigeriano, agora empresário FIFA no Brasil, lembra ao i como marcou seis golos pelo Benfica nos 14-1 ao Riachense, em 1989
Conhece algum nigeriano que fale brasileiro? Não? Vá lá, faça um esforço. O i deixa-lhe algumas pistas básicas: chegou a Portugal para jogar no Benfica em 1988-89... foi campeão nacional pelo Benfica na época de estreia... é ainda hoje o terceiro jogador com maior aproveitamento na relação golos/jogos na história centenária do clube, só atrás de Eusébio (473/440) e Julinho (202/200). Então, nem uma ideia sequer? Pronto, avanço com mais uma dica, mas depois disto... por favor, não é? O nome completo dele: Richard Daddy Owubokiri. Quem?
O Ricky! Aquele avançado pujante, que ainda vestiu as camisolas de Estrela da Amadora, Boavista e Belenenses, somou 79 golos em 172 jogos na 1.a divisão e foi Bota de Ouro, prémio para o melhor marcador do campeonato nacional, em 1992. Mas quem o podia esquecer? Pois é, ele agora vive no Brasil, mais precisamente em Salvador, capital do Estado da Bahia e do Carnaval, onde também jogou antes de dar nas vistas em Portugal. E é empresário FIFA. "Número 147", diz, orgulhoso.
Aos 48 anos, Ricky tem o disco rígido da memória repleto de antivírus. "As memórias portuguesas são preciosas. Passei lá a melhor fase da minha longa carreira", justifica o nigeriano, radicado no Brasil desde que pendurou as chuteiras, pelos sauditas do Al-Hilal, em 1997, acompanhado da mulher. "Uma baiana de gema", esclarece, com sotaque brasileiro. Alegre, portanto. Aliás, toda a conversa telefónica com Ricky é uma animação pegada (diz que é uma mistura do sangue africano, latino e brasileiro) e termina com um convite para beber um café em Lisboa ou no Porto, à minha escolha, quando vier a Portugal, em Março. Pelo meio, os 37 minutos de papo percorrem toda uma carreira de altos e baixos, como qualquer um, com um ponto de partida específico: os 14-1 do Benfica-Riachense para a Taça de Portugal, a 11 de Janeiro de 1989. Nessa quarta-feira à tarde, com o Estádio da Luz espantosamente composto com 5 mil pessoas, metade delas da vila ribatejana de Riachos, que viajou em peso para apoiar a equipa da 1.ª divisão dos regionais de Santarém, Ricky foi titular pela primeira vez (e única) no Benfica. E marcou seis golos. Sim, leu bem: seeeis. De facto, 1988-89 foi uma época sui generis para o futebol português: dias antes, o sueco Eskilsson marcara cinco golos nos 11-0 do Sporting-Alhandra, também para a Taça, que acabou por ser levantada pelo Belenenses, na última vez que o ex-futuro-ex-quarto grande abriu a sala de troféus. Ricky dos seis golos ao Riachense é, pois, mais um caso daquela incrível temporada. Ele sabe disso. E ri-se.
Ricky, boa tarde, daqui fala Rui Miguel Tovar, do jornal i.
Ah, Miguel Tavares, sim, sim, estás bom?
Tudo bem, obrigado. Telefono de Portugal. É mais difícil de encontrar do que sei lá o quê. Perguntei a uma série de jogadores seus companheiros no Benfica, Estrela, Boavista e Belenenses mas ninguém sabia de si.
Já se esqueceram? Não acredito!
Não, nada disso. Todos eles sabiam que estava na Bahia. A questão é que ninguém tinha o seu número de telefone. Desta vez, a FIFA ajudou-me. Mas também aí tive de andar às voltas porque não aparece na lista dos agentes FIFA da Nigéria...
Pois é, então se vivo aqui no Brasil, sou brasileiro, não é?
Está certo, sim senhor. Mas renegou as suas origens?
Não, nada disso. Sou nigeriano com muito orgulho, beijo a bandeira e até representei a selecção. Vê lá tu, fui eu que marquei o primeiro golo da Nigéria na qualificação do Mundial-94 [2-1 à África do Sul].
Então porque não foi a esse Mundial?
Isso são histórias em que nem se acredita. O seleccionador de então [Clemens Westerhof, um holandês] pedia dinheiro aos jogadores. Isto é, quem quisesse jogar, pagava-lhe. Ora eu sou titular da Nigéria porque mereço, trabalho e marco golos, não porque dou um saco de dinheiro a um treinador. Não faz sentido nenhum. Foi isso que me aconteceu, mas essa selecção tinha um talento inacreditável, com muita gente conhecida por aí. O Rufai era um bom guarda-redes que depois jogou no Farense e até no Gil Vicente. O Amunike já estava no Barcelona, mas tinha jogado muito bem no Sporting. O Yekini tinha acabado de se sagrar melhor marcador do vosso campeonato, pelo V. Setúbal. O Siasia iria jogar no Tirsense dois anos depois. Sem esquecer outros nomes grandiosos como Amokachi, Okocha, Ikpeba, Oliseh e Finidi. Enfim, também gostava de estar lá, mas paciência.
Paciência que foi coisa que não teve quando a dupla Toni/Jesualdo o lançou a titular no Benfica, não foi?
Ah, já entendi. Esse jogo dos 14-1 ao Riachense calha por estes dias, não é?
Sim, foi a 11 de Janeiro de 1989.
Xiii, há 21 anos. Sim, claro que me lembro desse jogo. Mas essa história tem de ser bem contada aos adeptos, sobretudo aos benfiquistas. Estava em França, a jogar na 1.a divisão pelo Metz [oito golos em 32 jogos durante 1987-88], quando o empresário português Lucídio Ribeiro me negociou para o Benfica, tinha eu 27 anos. Só que tive um azar tremendo e parti a perna no meu primeiro jogo, durante o estágio nos EUA. Não me lembro do adversário. Só sei que foi em Nova Iorque, no Giants Stadium. Fiquei arrumado e nunca pude evidenciar a minha pontaria pelo Benfica.
Nunca, não! Nesse jogo de Taça, foi um ver se te avias.
Sim [risos], nessa tarde fiz tudo o que podia. Tinha acabado de regressar após a lesão e estava ligeiramente desanimado pois perdera os dois primeiros jogos oficiais [1-2 com Boavista na Maia, a 31 de Dezembro de 1988, e 0-1 em Penafiel, uma semana depois]. Aquele jogo com o Riachense era importantíssimo.
Do que é que se lembra desse jogo?
Bem, além de conseguir a espantosa marca de seis golos, dois na primeira parte e quatro na segunda, lembro-me de uma tarde de Inverno com sol, da minha camisola vermelha com o número 9 nas costas, patrocinada pela Fnac, e dos adeptos numa gritaria danada, muito por culpa dos milhares dos torcedores do Riachense. Sabe que o golo deles foi no último minuto e os adeptos festejaram como se fosse a decisão do Mundial? Aí, percebi a grandeza do Benfica. E também a do Bento, um senhor guarda-redes [que foi junior no Riachense]. Era ele que estava na baliza e foi a ele que eles [Tochinha, um jovem fundador metalúrgico, futebolista nas horas vagas] marcaram. Também me recordo daquele esquerdino que veio do Portimonense... até jogou na selecção portuguesa... isso, o Pacheco! Ele foi espectacular, baralhou toda a gente e ofereceu-me sei lá quantos golos. Cá fora, demorei mais de 30 minutos para sair do Estádio. Eram tantos pedidos de autógrafos! Só no dia seguinte é que percebi que o Benfica tinha batido o seu recorde na Taça [datado de Abril de 1949, com 13-1 ao Académico de Viseu]. E eu fiz parte dessa história [Direito, autogolo, Ademir-2, Pacheco-2, Lima, Garrido e Miranda também marcaram].
Mas depois nunca mais jogou!
É verdade. Nessa época, marquei seis golos em seis jogos, cinco deles incompletos [ao todo, foram 210 minutos, o que dá um golo por cada 38'], porque a concorrência era enorme. Havia o Vata, que se sagrou melhor marcador da 1.a divisão nessa época [16 golos, 18 com a Taça de Portugal] e ainda o Magnusson [nove no total]. Sem esquecer o central brasileiro Ricardo Gomes [oito, todos no campeonato]. Não havia espaço para mim naquele Benfica que se sagrou campeão nacional, e que só não teve direito a dobradinha, com a Taça, devido àquele livre do Juanico, do Belenenses.
Mas voltou ao Jamor anos mais tarde, não foi?
Ah, isso é que é uma grande memória. Já estava a jogar pelo Boavista e decidi a final com o FC Porto [2-1 em 1991-92], na mesma época em que eliminámos o Inter da Taça UEFA. Nós, os das camisolas esquisitas [numa alusão às declarações de Zenga, guarda-redes do Inter, depois do sorteio]. Também foi nessa época que marquei cinco golos num só jogo pelo Boavista nos 5-0 ao Estoril, no Bessa, para o campeonato [21 de Março de 1992]. E foi nessa época que me sagrei melhor marcador do campeonato. Aquele Boavista era uma equipa tramada, com um treinador muito sabido [Manuel José]. Era como um pai. O Boavista deve-lhe muito. E também ao presidente.
Ao Valentim Loureiro?
Sim, ao major. Que homem! Ele queria, ele tinha. Ele sonhava, ele concretizava. Lembro-me tão bem dele naquele dia em que jogámos com a Lazio [4 de Novembro de 1993]. Era a segunda mão dos 16 avos de final da Taça UEFA, e tínhamos perdido 1-0 em Roma. Precisávamos de ganhar. E ele, o major, apareceu no balneário antes do jogo e atirou um saco cheio de dinheiro ali para o meio. Disse--nos: 'Isto é vosso se ganharem.' Ganhámos 2-0 e eu marquei os dois golos ao Marchegiani. Os adeptos do Boavista estavam histéricos. E nós, jogadores, também. Que loucura. Só fomos eliminados nos quartos-de-final pelo Karlsruhe, que tinha o Kahn na baliza. Marquei-lhe um golo no Bessa [1-1] mas perdemos 1-0 na Alemanha [autogolo de Nogueira], com os adeptos alemães a fazerem ruídos de macacos cada vez que eu e o Bobó tocávamos na bola. Vergonhoso.
E em Portugal, sofreu racismo?
Não. Foi só esse triste episódio.
E no Brasil?
Aqui? Fui o rei. Na Bahia. No Rio de Janeiro, onde joguei no América, agora presidido pelo Romário e treinado pelo Bebeto, e fiz um golo em sete jogos do Brasileirão-84. Depois, transferi-me para o Vitória. Na estreia, em Salvador, marquei ao Bahia [1-1], no famoso Ba-Vi. Isso garantiu-me logo um lugar no coração dos adeptos. Depois fui marcando, marcando, marcando. Fiz quatro nos Ba-Vi, espécie de Boavista-FC Porto daí. Uma rivalidade acérrima, dentro e fora do campo. Saí daqui apelidado de Gazela Negra, fui campeão baiano em 1985 e com uma média de 0,82 golos por jogo [65 em 79].
Isso foi antes de Portugal. E depois de Portugal, por onde andou?
Fui para o Qatar, quando o Qatar ainda não tinha aquele campeonato famoso com Hierro, Guardiola, Desailly, Nadal, Batistuta. No primeiro ano, no Al-Arabi, fui o artilheiro do campeonato com 16 golos em outros jogos. No ano seguinte, já no Al Hilal, acabei o ano com 27 golos em 26 jogos e recebi uma Bota de Ouro, prémio para o artilheiro do Médio Oriente.
E onde guarda esses prémios todos?
Em casa.
E o que faz aí para ocupar o tempo?
Abri uma escola de futebol e organizo projectos sociais no bairro de Villas do Atlântico, em Salvador.
OK, obrigado Ricky. Bom 2010.
Vai ser óptimo, porque estarei aí em Março. Diz aí ao São Pedro para abrandar o ritmo e me dar sol.
Conhece algum nigeriano que fale brasileiro? Não? Vá lá, faça um esforço. O i deixa-lhe algumas pistas básicas: chegou a Portugal para jogar no Benfica em 1988-89... foi campeão nacional pelo Benfica na época de estreia... é ainda hoje o terceiro jogador com maior aproveitamento na relação golos/jogos na história centenária do clube, só atrás de Eusébio (473/440) e Julinho (202/200). Então, nem uma ideia sequer? Pronto, avanço com mais uma dica, mas depois disto... por favor, não é? O nome completo dele: Richard Daddy Owubokiri. Quem?
O Ricky! Aquele avançado pujante, que ainda vestiu as camisolas de Estrela da Amadora, Boavista e Belenenses, somou 79 golos em 172 jogos na 1.a divisão e foi Bota de Ouro, prémio para o melhor marcador do campeonato nacional, em 1992. Mas quem o podia esquecer? Pois é, ele agora vive no Brasil, mais precisamente em Salvador, capital do Estado da Bahia e do Carnaval, onde também jogou antes de dar nas vistas em Portugal. E é empresário FIFA. "Número 147", diz, orgulhoso.
Aos 48 anos, Ricky tem o disco rígido da memória repleto de antivírus. "As memórias portuguesas são preciosas. Passei lá a melhor fase da minha longa carreira", justifica o nigeriano, radicado no Brasil desde que pendurou as chuteiras, pelos sauditas do Al-Hilal, em 1997, acompanhado da mulher. "Uma baiana de gema", esclarece, com sotaque brasileiro. Alegre, portanto. Aliás, toda a conversa telefónica com Ricky é uma animação pegada (diz que é uma mistura do sangue africano, latino e brasileiro) e termina com um convite para beber um café em Lisboa ou no Porto, à minha escolha, quando vier a Portugal, em Março. Pelo meio, os 37 minutos de papo percorrem toda uma carreira de altos e baixos, como qualquer um, com um ponto de partida específico: os 14-1 do Benfica-Riachense para a Taça de Portugal, a 11 de Janeiro de 1989. Nessa quarta-feira à tarde, com o Estádio da Luz espantosamente composto com 5 mil pessoas, metade delas da vila ribatejana de Riachos, que viajou em peso para apoiar a equipa da 1.ª divisão dos regionais de Santarém, Ricky foi titular pela primeira vez (e única) no Benfica. E marcou seis golos. Sim, leu bem: seeeis. De facto, 1988-89 foi uma época sui generis para o futebol português: dias antes, o sueco Eskilsson marcara cinco golos nos 11-0 do Sporting-Alhandra, também para a Taça, que acabou por ser levantada pelo Belenenses, na última vez que o ex-futuro-ex-quarto grande abriu a sala de troféus. Ricky dos seis golos ao Riachense é, pois, mais um caso daquela incrível temporada. Ele sabe disso. E ri-se.
Ricky, boa tarde, daqui fala Rui Miguel Tovar, do jornal i.
Ah, Miguel Tavares, sim, sim, estás bom?
Tudo bem, obrigado. Telefono de Portugal. É mais difícil de encontrar do que sei lá o quê. Perguntei a uma série de jogadores seus companheiros no Benfica, Estrela, Boavista e Belenenses mas ninguém sabia de si.
Já se esqueceram? Não acredito!
Não, nada disso. Todos eles sabiam que estava na Bahia. A questão é que ninguém tinha o seu número de telefone. Desta vez, a FIFA ajudou-me. Mas também aí tive de andar às voltas porque não aparece na lista dos agentes FIFA da Nigéria...
Pois é, então se vivo aqui no Brasil, sou brasileiro, não é?
Está certo, sim senhor. Mas renegou as suas origens?
Não, nada disso. Sou nigeriano com muito orgulho, beijo a bandeira e até representei a selecção. Vê lá tu, fui eu que marquei o primeiro golo da Nigéria na qualificação do Mundial-94 [2-1 à África do Sul].
Então porque não foi a esse Mundial?
Isso são histórias em que nem se acredita. O seleccionador de então [Clemens Westerhof, um holandês] pedia dinheiro aos jogadores. Isto é, quem quisesse jogar, pagava-lhe. Ora eu sou titular da Nigéria porque mereço, trabalho e marco golos, não porque dou um saco de dinheiro a um treinador. Não faz sentido nenhum. Foi isso que me aconteceu, mas essa selecção tinha um talento inacreditável, com muita gente conhecida por aí. O Rufai era um bom guarda-redes que depois jogou no Farense e até no Gil Vicente. O Amunike já estava no Barcelona, mas tinha jogado muito bem no Sporting. O Yekini tinha acabado de se sagrar melhor marcador do vosso campeonato, pelo V. Setúbal. O Siasia iria jogar no Tirsense dois anos depois. Sem esquecer outros nomes grandiosos como Amokachi, Okocha, Ikpeba, Oliseh e Finidi. Enfim, também gostava de estar lá, mas paciência.
Paciência que foi coisa que não teve quando a dupla Toni/Jesualdo o lançou a titular no Benfica, não foi?
Ah, já entendi. Esse jogo dos 14-1 ao Riachense calha por estes dias, não é?
Sim, foi a 11 de Janeiro de 1989.
Xiii, há 21 anos. Sim, claro que me lembro desse jogo. Mas essa história tem de ser bem contada aos adeptos, sobretudo aos benfiquistas. Estava em França, a jogar na 1.a divisão pelo Metz [oito golos em 32 jogos durante 1987-88], quando o empresário português Lucídio Ribeiro me negociou para o Benfica, tinha eu 27 anos. Só que tive um azar tremendo e parti a perna no meu primeiro jogo, durante o estágio nos EUA. Não me lembro do adversário. Só sei que foi em Nova Iorque, no Giants Stadium. Fiquei arrumado e nunca pude evidenciar a minha pontaria pelo Benfica.
Nunca, não! Nesse jogo de Taça, foi um ver se te avias.
Sim [risos], nessa tarde fiz tudo o que podia. Tinha acabado de regressar após a lesão e estava ligeiramente desanimado pois perdera os dois primeiros jogos oficiais [1-2 com Boavista na Maia, a 31 de Dezembro de 1988, e 0-1 em Penafiel, uma semana depois]. Aquele jogo com o Riachense era importantíssimo.
Do que é que se lembra desse jogo?
Bem, além de conseguir a espantosa marca de seis golos, dois na primeira parte e quatro na segunda, lembro-me de uma tarde de Inverno com sol, da minha camisola vermelha com o número 9 nas costas, patrocinada pela Fnac, e dos adeptos numa gritaria danada, muito por culpa dos milhares dos torcedores do Riachense. Sabe que o golo deles foi no último minuto e os adeptos festejaram como se fosse a decisão do Mundial? Aí, percebi a grandeza do Benfica. E também a do Bento, um senhor guarda-redes [que foi junior no Riachense]. Era ele que estava na baliza e foi a ele que eles [Tochinha, um jovem fundador metalúrgico, futebolista nas horas vagas] marcaram. Também me recordo daquele esquerdino que veio do Portimonense... até jogou na selecção portuguesa... isso, o Pacheco! Ele foi espectacular, baralhou toda a gente e ofereceu-me sei lá quantos golos. Cá fora, demorei mais de 30 minutos para sair do Estádio. Eram tantos pedidos de autógrafos! Só no dia seguinte é que percebi que o Benfica tinha batido o seu recorde na Taça [datado de Abril de 1949, com 13-1 ao Académico de Viseu]. E eu fiz parte dessa história [Direito, autogolo, Ademir-2, Pacheco-2, Lima, Garrido e Miranda também marcaram].
Mas depois nunca mais jogou!
É verdade. Nessa época, marquei seis golos em seis jogos, cinco deles incompletos [ao todo, foram 210 minutos, o que dá um golo por cada 38'], porque a concorrência era enorme. Havia o Vata, que se sagrou melhor marcador da 1.a divisão nessa época [16 golos, 18 com a Taça de Portugal] e ainda o Magnusson [nove no total]. Sem esquecer o central brasileiro Ricardo Gomes [oito, todos no campeonato]. Não havia espaço para mim naquele Benfica que se sagrou campeão nacional, e que só não teve direito a dobradinha, com a Taça, devido àquele livre do Juanico, do Belenenses.
Mas voltou ao Jamor anos mais tarde, não foi?
Ah, isso é que é uma grande memória. Já estava a jogar pelo Boavista e decidi a final com o FC Porto [2-1 em 1991-92], na mesma época em que eliminámos o Inter da Taça UEFA. Nós, os das camisolas esquisitas [numa alusão às declarações de Zenga, guarda-redes do Inter, depois do sorteio]. Também foi nessa época que marquei cinco golos num só jogo pelo Boavista nos 5-0 ao Estoril, no Bessa, para o campeonato [21 de Março de 1992]. E foi nessa época que me sagrei melhor marcador do campeonato. Aquele Boavista era uma equipa tramada, com um treinador muito sabido [Manuel José]. Era como um pai. O Boavista deve-lhe muito. E também ao presidente.
Ao Valentim Loureiro?
Sim, ao major. Que homem! Ele queria, ele tinha. Ele sonhava, ele concretizava. Lembro-me tão bem dele naquele dia em que jogámos com a Lazio [4 de Novembro de 1993]. Era a segunda mão dos 16 avos de final da Taça UEFA, e tínhamos perdido 1-0 em Roma. Precisávamos de ganhar. E ele, o major, apareceu no balneário antes do jogo e atirou um saco cheio de dinheiro ali para o meio. Disse--nos: 'Isto é vosso se ganharem.' Ganhámos 2-0 e eu marquei os dois golos ao Marchegiani. Os adeptos do Boavista estavam histéricos. E nós, jogadores, também. Que loucura. Só fomos eliminados nos quartos-de-final pelo Karlsruhe, que tinha o Kahn na baliza. Marquei-lhe um golo no Bessa [1-1] mas perdemos 1-0 na Alemanha [autogolo de Nogueira], com os adeptos alemães a fazerem ruídos de macacos cada vez que eu e o Bobó tocávamos na bola. Vergonhoso.
E em Portugal, sofreu racismo?
Não. Foi só esse triste episódio.
E no Brasil?
Aqui? Fui o rei. Na Bahia. No Rio de Janeiro, onde joguei no América, agora presidido pelo Romário e treinado pelo Bebeto, e fiz um golo em sete jogos do Brasileirão-84. Depois, transferi-me para o Vitória. Na estreia, em Salvador, marquei ao Bahia [1-1], no famoso Ba-Vi. Isso garantiu-me logo um lugar no coração dos adeptos. Depois fui marcando, marcando, marcando. Fiz quatro nos Ba-Vi, espécie de Boavista-FC Porto daí. Uma rivalidade acérrima, dentro e fora do campo. Saí daqui apelidado de Gazela Negra, fui campeão baiano em 1985 e com uma média de 0,82 golos por jogo [65 em 79].
Isso foi antes de Portugal. E depois de Portugal, por onde andou?
Fui para o Qatar, quando o Qatar ainda não tinha aquele campeonato famoso com Hierro, Guardiola, Desailly, Nadal, Batistuta. No primeiro ano, no Al-Arabi, fui o artilheiro do campeonato com 16 golos em outros jogos. No ano seguinte, já no Al Hilal, acabei o ano com 27 golos em 26 jogos e recebi uma Bota de Ouro, prémio para o artilheiro do Médio Oriente.
E onde guarda esses prémios todos?
Em casa.
E o que faz aí para ocupar o tempo?
Abri uma escola de futebol e organizo projectos sociais no bairro de Villas do Atlântico, em Salvador.
OK, obrigado Ricky. Bom 2010.
Vai ser óptimo, porque estarei aí em Março. Diz aí ao São Pedro para abrandar o ritmo e me dar sol.